segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Eu já ia ao King quando ainda era cool

Há um fenómeno, já reflexo, que leva algumas pessoas a resumir num nome ou numa obra o gosto dos outros quando este é levado para caminhos mais, digamos assim, complexos. Às vezes é condescendente ("eu devo ser muito burro"), outras ofensivo ("não acredito que eles gostem mesmo daquilo"), mas o fundamental é que, por norma, este fenómeno é sempre representado pela mesma entidade. O cinema e a literatura têm dois grandes clássicos: Bergman no geral para o primeiro e Ulisses de Joyce em particular, para o segundo. Na música o alvo costuma ser o free jazz, na pintura, Jackson Pollock, e assim sucessivamente.

José Rodrigues dos Santos fez um conhecido brilharete destes há pouco tempo quando disse não acreditar que alguém pudesse ler o Ulisses com prazer, e as caixas de comentários da crítica de cinema do Público devem ter uma ocorrência do termo 'Bergman' superior à das próprias críticas como em "vocês que só vêem Bergman, mas na verdade odeiam cinema" ou o não menos popular "eu gosto de cinema, mas não vejo só Bergman, também gosto de ir ver uma comédia romântica", como se Bergman (ou Joyce ou Ornette Coleman) fosse uma praga que destrói toda a criação em volta.

Não há nada de fascinante nestas pessoas (além disso são muitas) mas há na escolha do estandarte da indignação. Eu próprio gostaria de ser um ("tu dizes que gostas de blogs mas só lês Sérgio Gouveia"), só que é necessário uma obra mais vasta e, muito provavlemente, mais genial, pelo que é uma aspiração que não alimento nesta fase da minha carreira.

Vai havendo quem o consiga e foi assim que o King foi para as salas de cinema o que o free jazz foi para os géneros musicais, e este estatuto é um dos seus feitos. Ontem fechou, infelizmente sem grande surpresa. Como se diz aqui na Noite Americana, fechou porque não lhe deram de comer. As salas vazias dos últimos anos não eram bom augúrio, e sinceramente não sei dizer se há culpados, ou melhor, não sei dizer quais são. Mas posso ter pena na mesma. O King foi o cinema onde vi mais filmes e seguramente onde vi os melhores (falando só em estreias comerciais). Fechou ontem sem enchentes (nem perto de meia sala), mas com uma nostalgia generalizada entre os presentes e com sessões de Ozu e Bertolucci, o que não deixa de ser bonito, sobretudo porque com certeza não o fizeram de propósito.

O testemunho do título de cinema-para-pseudos-de-óculos-de-massa-e-gola-alta-que-vêem-filmes-que-não-gostam passa agora para o Nimas (na verdade, já o partilhava com o King, por vezes), e para provar que está à altura, começa já em Dezembro uma retrospectiva de Bergman.

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